"GOSTAVA DE FAZER UM DISCO DE FADO JOCOSO"

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Carlos do Carmo. O fadista celebra 45 anos de carreira. A 29 deste mês actua no Pavilhão Atlântico, em Lisboa. Hoje lança uma nova antologia em CD. Chama-se 'Fado Maestro' e junta às canções um DVD, em que encontramos um documentário e excertos de duas actuações ao vivo. Todavia pensa já no futuro. E ainda tem sonhos para levar a disco

Na juventude chegou a ter planos de futuro que em nada passavam pelo fado. Mas deu por si a estudar para poder trabalhar na indústria hoteleira.

Por vontade do meu pai, à qual respondi com muito gosto. Ele sentia que não ia viver muito tempo. E acertou em cheio. Disse-me: rapaz, não contes com heranças. Aprende o máximo que possas que a herança que te quero deixar é essa.

Em vez de lhe dar peixe, ensinou-o a pescar...

Morreu com 56 anos. E isso mudou-me os planos todos... Tinha vontade era de ganhar muito dinheiro, de maneira a que os meus pais não fizessem rigorosamente nada. Era o meu sonho...

A morte dele obrigou-o a assumir um lugar na casa de fados que tinham.

Aos 21 anos, ali ao lado da minha mãe. Trabalhámos que nem malucos. Era uma grande casa de fados, com sucesso. Efectivamente a hotelaria foi praticada. Tive uma equipa de trabalho muito coesa, de quem guardo muitas saudades. Era uma equipa. E guardo saudades de alguma clientela. Pessoas que nos habituámos a ver.

Na adolescência usa-se a música como forma de expressar rebeldia... Como foi consigo?

Contestando o mais possível. Mas muito apaixonado pelas minhas sinatradas, pelo Ray Chareles, pelo Armstrong, o Miles Davis. Depois começo a entrar na música francesa e na música italiana. Sempre gostei também muito de música brasileira. O fado andava ali... Apreciava. Distinguia bem quem cantava e quem tocava... Até porque o meu pai falava mais disso que a minha mãe. O meu pai ensinava. Aliás tenho uma coisa em comum com o meu pai: eu gosto mais de ouvir homens a cantar o fado que mulheres. De maneira que me habituei a ouvir...

São experiências que formam...

Sim. Afinal estamos a falar de uma tradição oral. Ouvi tantas pessoas a contar histórias. As histórias do fado! Eles eram já velhinhos naquela altura e estavam a contar histórias do início do século. Homens, normalmente artesãos, que chegavam ao fim do dia de trabalho a casa, vestiam o fato e a gravata e iam cantar...

De certa maneira vestiu um pouco essa tradição quando esteve no Faia. Era gestor de dia e cantava de noite...

De fatinho e gravata, à meia-noite, em cima do palco a cantar, às vezes podre de cansado.

O fadista nasceu aí?

No dia-a-dia... De noite, a apanhar com o fumo das pessoas.

Como reagiu a mãe [a fadista Lucília do Carmo] ao ver o filho a ganhar uma identidade própria?

Muito bem... Às vezes de uma forma um pouco conservadora. Mas quem lhe dava na cabeça, curiosamente, era o Marceneiro. Dizia-lhe: Ó Lucília, isto que estás a falar já nós fizemos. Então queres que o miúdo faça outra vez o mesmo? Deixa-o fazer as coisas dele...

O que o fez depois pensar que a voz que já cantava na casa de fados poderia ir mais longe?

A rádio. Os poucos discos que fiz ao princípio tocaram muito na rádio. E as pessoas gostavam e iam à procura do tal rapaz que se chamava Carlos do Carmo e que era filho da Lucília do Carmo. "Vamos lá ouvir o miúdo"... Era o dois em um. Iam ouvir a mãe e, depois, a... sobra.

A descoberta de uma personalidade sua no fado passou também pela pela abordagem aos instrumentos que escolheu?

Apesar da imensa guerra que ainda hoje os puristas me fazem, e que assumo calmamente, gosto muito de cantar com orquestra!

No disco usa até a palavra "sacrilégio" quando fala do trabalho com orquestras... Estávamos em finais dos anos 60...

Quando apareço a cantar a Gaivota, com arranjos do [Jorge] Costa Pinto e com a guitarra do [José] Fontes Rocha não houve pessoa nenhuma da minha família que escapasse. Toda a gente foi insultada. Era "maluco", onde já se via cantar fado com uma orquestra?

Esse gosto de trabalhar com orquestra terá a ver com a velha admiração pelos discos de Frank Sinatra?

Completamente! Aqueles arranjos do Gordon Jenkins, seja para o Nat King Cole seja para o Sinatra. Chamo a isso camas. Vais cantar? Não. Vou-me deitar!...

Até que ponto a escolha de quem assina os poemas é determinante na criação de um disco?

Seja do que for na vida, gosto de gostar. E o gostar de gostar está ligado às pessoas e tem uma imagem de apreço. Em tempos ia ao Chiado engraxar os sapatos por um homem que era um artista. Na questão do repertório, fui conseguindo essa coisa mágica que foi o aprofundar de relações. Por exemplo, não teria sido possível eu cantar os 32 ou 33 trechos do Ary dos Santos se não tivéssemos tido a amizade que tivemos um pelo outro.

E são clássicos os discos que fizeram. O Homem na Cidade, OHomem no País...

E falta o terceiro... O Homem no Mundo. Mas quando for ter com o Ary acabamo-lo... Eram três discos. Ele morreu... E faltou esse.

Há discos que ainda gostasse de fazer?

Gostava de fazer um disco de fado jocoso. Falar daquilo que se passa em Lisboa. O Fado dos Contentores... O perder da vista do Tejo... São ideias malucas, mas o fado é isto... Apetecia-me muito cantar uma dezena de fados a falar dos mamarrachos, a contar histórias dos prédios que estão vazios ou onde vivem apenas duas pessoas. Mas sem um ar dramático. Mas para nos rirmos de nós próprios. Acontece que não sou poeta. E não tenho cá o Ary. Se houver aí um tipo que tenha jeito para isso e se disponha a isso, vamos aí... O fado é camaleónico. Está sempre a adaptar-se às épocas. E isto era o que eu ouvia os ceguinhos a cantar no bairro da Bica. Cantavam as histórias do dia-a-dia... Então o que é o que o Carlos do Carmo vai cantar hoje? Vou cantar o Fado dos Contentores... Com todo o respeito pelos Contentores dos Xutos...

"A rádio pública não toca fado... Mas os espectáculos estão cheios!"

Começa a carreira ainda sob o regime de Salazar. A mudança dos contextos políticos ressentiu-se no fado?

Acho que isso aconteceu desde sempre. Gostava de mais uma vez dizer que, pessoalmente, eu não fui afectado. Não tive quebra de vendas de discos nem de espectáculos. Mas o fado, sim. A esquerda radicalizou as coisas de uma forma tal que às tantas parecia quase absurdo o que estava a passar-se. E eu perguntava a outras pessoas de esquerda, como eu, que me dessem uma boa razão para eu deixar de cantar o fado. E ninguém ma dava. "Ah, mas tu é tu..." Diziam alguns... Mas eu não sou o fado! Há fados de que gostamos e outros de que não gostamos... Não vamos é demonstrar ignorância. E porquê ignorância? Nos anos dez e vinte o fado tem um período brilhante em que as pessoas que escrevem para o fado fazem a melhor poesia popular da Europa! E eram fascistas? Nos anos dez e vinte? Eram comunistas? Não... E este processo lento e meio complicado criou grandes ressentimentos. A classe fadista ficou muito ressentida. Ainda hoje se sente entre alguns mais velhos um grande ressentimento. E eu tentava fazer de pacificador. Calma, que isto não vai ficar assim...

Era difícil essa posição de pacificador?

Era um lugar isolado.

Não faria sentido era não deixar clara a sua posição política num tempo em que todos o podiam fazer...

Seria para mim a negação da vida. A ideia era darmos um passo para a construção da liberdade. Não faria sentido termos a liberdade e, para não desagradar a umas senhoras ou senhores, dizer que a minha política era o trabalho... As pessoas tomam as suas posições. Bem ou mal... Cantar o fado em liberdade é muito bom.

Reflectiu o país no que cantou...

Mas sem dar recados...

O que acontecia em algum canto de intervenção...

Que também era legítimo, com grandes cantores de intervenção. Alguns deles vivos, com um belo trabalho feito. Mas quando o Ary estava a escrever um fado que resvalava para aí, dizia-lhe que já me estava a pôr na boca aquilo que não queria dizer... Ele perguntava se eu estava a ficar reaccionário... Nada disso! Sou fadista e tenho de cantar na minha área. Dizia-lhe que teríamos de fazer fados que, daí a 30 anos, as pessoas não dissessem de que ano eram. Ele percebeu...

O que fez que os portugueses se reencontrassem com o fado?

O gosto...

E como renasce esse gosto? Levou tempo...

Cansaço... Depois houve um momento... Lá passaram os anos 80, foi-se fazendo o processo, devagarinho... Mas a rádio pública não toca fado... E muitas outras rádios não tocam fado. Então isto tem muita piada, porque nos tops alguns dos discos que mais vendem são de fado. E os espectáculos estão cheios! É muito engraçado...

Foi importante o aparecimento de uma nova geração de fadistas para esse reencontro ser um facto?

Naturalmente. Mas se houve momento crucial, ele foi a morte da Amália. Algo desapareceu fisicamente. E, ao ter o mediatismo que teve, durante uma semana não se falou em mais nada nos jornais. E os miúdos foram ouvir os discos da Amália que as mães tinham...

Porque há sobretudo vozes femininas na actual geração?

São os ciclos. Um ciclo feminino... Quando morreu o Marceneiro houve um ciclo de homens. O fado tem estas histórias...

Falta ensinar curricularmente o fado em Portugal?

Acho que sim. E estou convencido que o trabalho que está a ser feito no sentido da candidatura do fado a património imaterial da UNESCO, em 2009, se nos correr bem vai mudar coisas.

O público redescobriu o fado. Mas ainda há muito desconhecimento. Porque sabem os portugueses tão pouco sobre o fado?

Terá a ver com a nossa falta de auto-estima? Ou com aquela ideia que, quando qualquer coisa não corre bem, lá se diz que é o nosso triste fado...

Mas o fado é triste?

Se as pessoas fossem informadas saberiam que há o fado corrido. O fado dançado... Não, é o nosso triste fado!

Vai deixar coisas ao Museu do Fado...

É verdade. Excepto alguma ou outra coisa pessoal que fique para filhos e netos.

Porquê o Museu do Fado?

É o espaço certo.

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